ESPAÇOS DE IDENTIDADE
Lucia Serrano Pereira1
À primeira vista, um conjunto, três fotos e o efeito de certa desacomodação que acontece de imediato: conheço/desconheço, onde ancorar o olhar? Cores e reflexos que perturbam as formas, mas, esperem, é mesmo o escorredor de louças, o mais íntimo e banal de uma casa, de uma família? Não mesmo, são leques estranhos, longínquos, espelhados; são os tempos de repouso lavados e escorridos; são os ecos, restos da vibração e a bagunça colorida da infância…
As imagens que a artista Silvia Giordani reúne e nos propõe com sua obra “Espaços de identidade” permitem cruzamentos inusitados, sintonia fina com os traços que nas vidas (e na obra) se apresentam em profusão, sejam amontoados, ordenados ou misturados, traços que contam ao se dizer das identificações. É dessa matéria que se compõe o humano, no mais cotidiano, na incrível propriedade que tem o detalhe para dizer de um particular, da “natureza” de uma vida. E ainda a repetição, o jogo das multiplicações, os circuitos que se reeditam, há algo que diga mais de nós mesmos do que nossas amadas e odiadas repetições?
Mais ainda, a perturbação – vai caber tudo aí, no recipiente que dispomos para atravessar o dia a dia (nossos corpos, por exemplo)?
O interessante na trama que envolve cada um com seus traços, seus objetos, seus restos, os reflexos que se misturam e criam composições, tem a ver, fundamentalmente, com o que neles se produz e que nos interroga. É quando “o que vemos, nos olha”, palavras de Georges Didi-Huberman2 ao chamar a atenção para o poder de interpelação que o objeto (e aqui acrescentamos – esses objetos produzidos sob a lente do artista) possui e exerce. A mágica acontece, como nos “Espaços de identidade”, em uma operação paradoxalmente simples e complexa, por um lance do olhar que resgata a partícula de enigma e mistério onde transitamos habitualmente sem ver.
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1Pós-doutora em Psicologia – Psicanálise, UFRGS, Doutora em Letras – Literatura, UFRGS e Mestre em Letras – Literatura, UFRGS. Membro da Association Lacanienne International e da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
2 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.