Projetos

MISE EN SCÈNE

Nesta série a pose é discutida a partir do viés da representação. Encenação, farsa… mise en scène. A expressão em francês descreve aquilo que vem à minha memória como um resquício da literatura psicanalítica: a teatralização da histeria, ocorrida no Hospital de La Salpêtrière, no final do século XIX.
No formato de um teatro e com uma plateia de médicos, Charcot organizava e dirigia a representação das pacientes, que estavam conscientes do evento e em boa parte cúmplices e simuladoras no vouyerísitico jogo de olhares (Giambrone, 2012, p. 129). Assim como as dramatizações no hospital de Paris, as imagens deste projeto trazem uma imagem feminina em um estado entre a ficção e a realidade.
A protagonista cria sua própria encenação ao usar adereços que não fazem parte do seu universo. Annateresa Fabris (2004), explica que, quando inserida numa condição ideal, a pessoa exprime-se por intermédio dos códigos “fisionômico” e “vestimônico”. A pose cria uma imagem ficcional, construída no hiato entre o olhar da artista e da personagem.
Se em algumas fotografias a menina se olha, como que apropriando-se do seu papel, em outras a atitude é impositiva. O olhar transborda pela frente da imagem e posiciona o observador explicitamente: “designa seu lugar, que é o próprio lugar do olhar constitutivo da cena e do próprio campo.” (Dubois, 2001, p. 183-184). A frontalidade firme do olhar, colocando seu observador em cena, faz uma inversão do fora-de-campo pelo campo.
Foucault (2000, p. 12) também chama a atenção para o entrecruzamento de olhares, ao analisar a obra Las Meninas, de Diego Velázquez. “A princesa vira a cabeça para a direita do quadro, enquanto o seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; o olhar, porém, dirige-se aprumado na direção do espectador que se acha em face do quadro.”

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. 5 ed. Campinas: Papirus, 2001.

EL PRADO. Colecciones de pintura. Madrid: Lunwerg, 2000.

FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: Uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

FOUCAULT, Michel. Las Meninas. In: As Palavras e as Coisas – Uma arqueologia das ciências humanas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GIAMBRONE, Roberto. Dançar a crise: a histeria da clínica à cena. Urdimento. Revista de estudos em artes cênicas.  v. 2, nº 19. Nov de 2012. pp. 130-134.

 

ESPAÇOS DE IDENTIDADE

Apresento fotografias que denomino de naturezas mortas, num sentido não convencional, cujas imagens se desdobram no espaço por justaposições modulares, formando grandes painéis. Neste sentido também apresento paisagens, porém estas são compostas por uma única imagem horizontal. Tais representações se configuram como meus espaços de identidade.

 

CORPO E PEDRA

Estabeleço relações entre conjuntos de basaltos e sua disposição na imagem fotográfica e uma série de livros de medicina fora de uso, explorando associações formais e o paradoxo entre a dimensão mineral e orgânica, quente e fria, pele e pedra. As inscrições naturais dos basaltos, criadas ao longo do tempo através da impregnação de óxidos, dialogam com as capas dos livros tanto pelo aspecto formal quanto pelo conceito de passagem do tempo. Encontro nestes objetos os elementos plásticos para falar sobre a ação do tempo sobre o corpo. Cada livro parece ter vida através de sua cor e textura; a capa funciona como uma pele e denuncia a idade do livro pelo seu estilo. Inicialmente foram utilizadas publicações guardadas pela família, empilhadas em um consultório, petrificados em seu desuso, por seu conteúdo ser um saber ultrapassado. Depois a pesquisa foi ampliada, incluindo livros guardados por outros médicos. Num outro momento, busquei livros antigos em bibliotecas.
Algumas fotografias são apresentadas em estruturas de madeira que se parecem com estantes. Em “Corpo e Pedra 1”, os livros são de várias especialidades médicas. Já em “Pele e Pedra 3”, todos os livros são de dermatologia, sendo que alguns deles e algumas pedras estão revestidos com pele humana. De forma paradoxal, o mineral e o orgânico fazem encontro nestas prateleiras. Os livros também são fotografados na mesma disposição que os basaltos ficam empilhados nas pedreiras.
A obra “Autorretrato” é um desdobramento deste trabalho, onde os livros em questão fazem parte da minha biblioteca. Para contar a história da minha formação cultural, crio uma trama desde Freud, passando por teorias de arte, até “O Manual da Mãe Judia”. A foto ocupa o lugar que poderia ser de um porta-retratos na estante ou de um espelho, que me reflete em uma rápida passagem pela biblioteca.
Já “O Que Se Não Deve Dizer” traz uma seleção de publicações de propriedade particular, com clássicos em português obsoleto.

BODY AND ROCK

I establish relations between collections of slabs of basalt and their arrangement in a photographic image and a series of books on medicine no longer in use, exploring formal associations and the paradox between the following dimensions: mineral and organic, hot and cold, and skin and rock. The natural inscriptions on basalt, created over time through the impregnation of oxides, dialogue with the book covers, both on the basis of their formal appearance and the concept of the passage of time. In these objects, I encounter forms which speak about the action of time over the body. Each book seems to be alive because of its colour and texture; the cover acts as skin and it reveals the age of the book based on its style. Initially, I used publications kept by the family, stacked up in a doctor’s office, which had become petrified from lack of use, because their content was out-dated. My research was then broadened to include books kept by other doctors. Later on, I searched for old books in libraries.
Some photographs are displayed on wooden structures which look like bookshelves. In “Body and Rock 1,” the books are from various medical specialities. Instead, in “Skin and Rock 3,” they are all dermatology books, with some of the books and some rock being enveloped in human skin. Paradoxically, mineral and organic material come together on these shelves. The books were also photographed in the same arrangement as basalt is stacked up at quarries.
The piece, “Self-Portrait,” is a ramification of this project, in which the books in question are part of my library. In order to tell the story of my cultural background, I wove a web going from Freud, to theories of art and then onto “A Manual for Jewish Mothers.” The photo occupies a place which could be for a picture frame on a bookshelf or for a mirror, which reflects my image when passing quickly through the library.
On the other hand, “What One Shouldn’t Say” contains a selection of privately owned publications, with classics in obsolete Portuguese.

 

DAS UNHEIMLICHE

Bonecas abandonadas pela casa após o brincar. Por que elas me surpreendem? Por que me despertam uma sensação de dúvida? Nos momentos lúdicos, as crianças dão vida aos brinquedos, fazendo bonecas falarem, se relacionarem e, muitas vezes, atribuindo-lhes identidade e sentimentos humanos. Na ausência das crianças, esta condição se altera: Guardadas na estante ou esparramadas pelo chão, não passam de objetos inanimados. Foi o deparar-me com a imobilidade e com o olhar vazio, num corpo de borracha com características que muito se aproximam ao humano, que me provocou uma sensação de estranheza.
Freud (1919, p. 284) cita Jentsch para falar deste sentimento: A estranheza desperta quando há “dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo; ou, de modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado”.
As bonecas abandonadas após o brincar são destacadas através de recortes fotográficos, que buscam salientar pontos de dubiedade, seja pela pose ou pelo olhar. “…um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade…” (FREUD, 1919, p. 304).

FREUD, Sigmund. (1919). O “Estranho”. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVII.

DAS UNHEIMLICHE

Dolls abandoned around the house after play. Why do they surprise me? Why do they awaken in me a sensation of doubt? When playing around, children give life to toys, making dolls speak and interact and often endowing them with an identity and human feelings. In the absence of children, this situation changes: When put away on a bookshelf or spread about on the floor, they are nothing more than inanimate objects. Encountering this motionlessness and empty gaze, in a rubber body with features very similar to those of a human, aroused a sensation of uncanniness in me.
Freud (1919, p. 284) cites Jentsch to speak about this feeling: Uncanniness is evoked when there are “doubts about whether one knows if an apparently animate being is actually alive; or, inversely, if an object without life could not actually be living.”
These dolls abandoned after play are made to stand out by way of photographic clippings, which aim to highlight points of uncertainty, whether because of their pose or gaze. “… an uncanny effect arises when one erases the distinction between imagination and reality…” (FREUD, 1919, p. 304).

FREUD, Sigmund. (1919). The “Uncanny.” In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVII.