O Corpo e Seus Paradoxos | Niura Legramante Ribeiro

O CORPO E SEUS PARADOXOS: dicotomias, estranhamentos e fabricações de identidades

Niura Legramante Ribeiro1

Justaposições de paradoxos entre imagem e palavra: Projeto Corpo e Pedra

Corpo, livro e a pedra. Extrair associações visuais e conceituais entre esses corpus de imagens é o que propõem os trabalhos fotográficos de Silvia Giordani. As idéias que mobilizam as suas concepções plásticas se estruturam a partir de questões sobre corpo e identidade física, científica e cultural, auto-retrato, coleção, repetição, texto e imagem.

Para a série de trabalhos do projeto Corpo e Pedra, pode-se perguntar onde está o corpo ou a quais corpos aludem seus trabalhos. Em certas obras o que se vê, não é um corpo físico, mas um corpo referenciado pelo conhecimento científico, um corpo nomeado do ponto de vista de sua saúde clínica. Através do procedimento por justaposição, a artista intercala dorsos de pedras com dorsos de livros, cujos títulos deixam ver com clareza as suas respectivas identidades clínicas. As imagens fotográficas de livros dispostas na forma objetual de uma estante, no trabalho Pele e Pedra 3, 2010, apresentam a idéia do corpo nas suas possibilidades de tratamento físico. A escolha por uma coleção de livros sobre dermatologia se refere diretamente a pele como invólucro do corpo, que associada à pedra pode criar muitas antinomias. Implícita está, num primeiro momento, a ideia de contradição de princípios.

Em Carne e Pedra 2,2 2008, texto e imagem agenciam os significados teórico-plásticos. A associação entre pele e pedra é atestada pelos títulos dos livros, visíveis através de enquadramentos aproximados e da nitidez das imagens: Cliniques Dermatologiques, La Pratique Dermatologique, Maladies de la Peau e Enfermidad de la Piel y Sexuales. Estas nomeações explicitam, portanto, os tratamentos medicinais do corpo e que são confrontados à imagem de pedra bruta, sem polimento, sem tratamento.  Pele e pedra, um paradoxo? A associação conceitual não deixa de produzir um confronto de disparidades nos seus estados naturais, entre o sensível e o insensível, o liso e o áspero, o quente e o frio, a maciez e a dureza, o perecível e o imperecível, a fragilidade e a solidez, dentre outras. Mas, haveria alguma similaridade entre esses elementos tão díspares? Em meio a tantas oposições, pode-se pensar também no que poderiam se aproximar enquanto superfícies. O tempo provoca no corpo, suas incisões e relevos de momentos vividos e na pedra, o tempo deposita, por exemplo, acúmulos de intempéries. Ambas são superfícies de contato, de aderência de inscrições do tempo transcorrido, da relação com o mundo e do que se passa ao seu entorno.

Em O Que Não se Deve Dizer, 2010, os livros de aparências envelhecidas, marcados pela passagem do tempo ou quem sabe, por um conhecimento ultrapassado, estão empilhados em camadas horizontais e se somam aos dorsos dos basaltos, estes percebidos apenas por um olhar mais atento, pois a artista escamoteia as suas presenças, pela simulação de tonalidades e de texturas igualmente envelhecidas. A coloração das bordas das folhas dos livros e das superfícies das pedras parece ter sido resgatada de algum lugar do passado. Em ambos, livros e pedras, podem-se encontrar equivalências de espessuras, de dorsos descascados e manchados, de aspectos áridos, de cortes e de enquadramentos aproximados que evocam uma aparência de peso nas imagens representadas. As associações textuais que a artista realiza nas suas escolhas de justaposição dos títulos das publicações, potencializam os significados das imagens e criam, uma vez mais, uma situação paradoxal: O Que não se Deve Dizer, título do livro e do trabalho, divide o mesmo espaço plástico com outro título como Diccionario. Se por um lado “não se deve dizer,” por outro, há uma referência a uma coleção dos significados que se buscam quando se quer entender, justamente, o que as palavras querem dizer. O estranhamento paradoxal ocorre, portanto, entre a negação e a possibilidade do conhecimento.

O que se verifica em determinados trabalhos da artista é uma possibilidade de equivalência entre corpo e pedra ou seria corpo de pedra? Isso parece ficar evidente em Sem Título, 2008, ao tratar o dorso de uma pedra como se fosse um dorso de um livro. Para dar continuidade ao dorso do livro Tratado de Radiologia, a artista justapõe o dorso de uma pedra de basalto de mesma espessura e escreve o referido título de livro no dorso da pedra. Não fossem os desníveis nas superfícies das pedras que deixam antever o seu procedimento, poderia ser um livro de pedra. É significativo que a artista tenha escolhido justapor uma pedra com sua opacidade e intransponibilidade de superfície a um livro de radiologia, cuja significação de sua natureza de raio-x, possibilita ver o interior, a transparência do corpo. Assim, seus trabalhos desta série estão permeados por sistemas paradoxais que instigam o espectador a pensar por associações que, de certa forma, são simbolicamente incompatíveis. Ainda neste trabalho há uma alusão ao corpo feminino pelo que indicam os títulos dos livros, Cirurgia Ginecológica e Lições de Clínica Obstétrica, que pela superposição dos volumes podem evocar ainda a ideia de um conhecimento acumulado.

A carga visual e conceitual na área médica, recorrente em diversos trabalhos, é decorrente de coleções pertencentes a biblioteca da família e a formação da própria artista. A obra Autorretrato, 2009, mapeia sua trajetória profissional na área da saúde e das artes visuais. Como em outras fotografias, Giordani procede por associações de imagens, desta vez, entre o seu retrato físico e publicações da história da arte e da psicanálise que se constituem numa coleção de memórias que apresentam a sua identidade cultural. O intelecto e o psíquico, tanto para a arte como para a psicanálise, podem resumir a concepção de sua própria identidade. A frontalidade imponente do rosto da artista no seu retrato, somado a disposição dos livros em blocos, separados por assuntos de psicanálise e de arte, como numa catalogação, possibilitam ter uma visão de identidade fundamentada numa racionalidade de princípios. Corpo e conhecimentos científicos e culturais organizam sua identidade.

O corpo, o espelho e a câmera: a fabricação de identidades no Projeto Construções

Os trabalhos fotográficos de Giordani, realizados no Projeto Construções, 20103, tratam da relação entre corpo e fabricação de identidades. O trabalho consistiu em fotografar pessoas se olhando em espelhos para verificar até que ponto estas podem construir suas poses de forma a consagrar a melhor imagem de si. Conforme apontei no texto Ficções Fisionômicas?, 2011, que escrevi para o grupo do Projeto Construções, as pessoas defrontaram-se com um duplo desafio, que era o de confrontar-se com dois objetos do desejo – o espelho e a câmera fotográfica. As pessoas sabem que se o espelho apreende uma imagem fugidia, a câmera faz um registro que eterniza a imagem do retrato. O fato de saber que se estava posando para uma câmera, já extinguia a possibilidade de se apresentar com naturalidade: “um retrato fotográfico é uma imagem de alguém que sabe que o estão fotografando” (Richard Avedon apud EWING, 2008, p. 29). É esta consciência que estimula a fabricação do corpo frente à câmera fotográfica, aguçada ainda pela presença do espelho como objeto de sedução. O que as imagens demonstram são atitudes de controle de expressões fisionômicas e de gestos corporais ou de seu extremo, como a construção de teatralidade de atitudes. Assim, as suas fotografias deste projeto, mostram desde comportamentos mais sérios até os mais exagerados e ambos parecem ocultar certas individualidades.

Os enquadramentos aproximados dos rostos das pessoas nos espelhos criam um confronto direto com o olhar. Em alguns casos a artista corta os rostos numa visão tão próxima, por vezes registrando somente um dos olhos, que parece querer captar, em vão, a alma humana. Talvez, a aproximação da lente aos rostos, seja uma tentativa da artista de apreender essas vias de escape do rosto da qual fala Georges Bataille, 1944 (apud EWING, 2008, p. 52) “no rosto humano tem uma infinidade de voltas, de curvas e de rotas de fuga.” Em determinados retratos são visíveis também as marcas dos acidentes impressos na pele pelo tempo: “quanto mais envelheço, mais a minha pele parece dizer aos outros quem eu sou” (JEUDY, 2002, p. 89). O rosto humano, na sua aparência física, é um mapa que vai se construindo e registrando os territórios das trajetórias vivenciadas.

Outros retratos buscam o contrário dessa visão mergulhada no espelho, quando captura as pessoas de perfil numa atitude de distanciamento do fotografado em relação ao espelho. Aqui nem sequer aparece a imagem refletida, mas o interesse está no relacionamento da pessoa com o objeto. Se compararmos os dois procedimentos de captura, no aspecto do enquadramento da imagem, podemos encontrar mais uma relação de paradoxo na concepção de seus trabalhos: ora a artista mergulha no detalhe da imagem do corpo, ora mantém uma relação de afastamento.

Estranhamentos corporais: Das Unheimliche

As séries fotográficas denominadas de Das Unheimliche, 2011, termo Freudiano4 retirado da área de formação psicanalítica da artista, fazem sentido na concepção de estranhamento que as imagens das bonecas podem provocar. Fotografadas em preto e branco, esta coleção de bonecas, de olhares expressivos e de intenso caráter de realidade, desafiam nosso olhar. Como em outros trabalhos, Giordani confronta diretamente seus assuntos com a nossa visão, pelos enquadramentos aproximados e cortes inusitados dos quais lança mão como se quisesse fazer o espectador mergulhar nas imagens. O trabalho Das Unheimliche 3, 2011, faz uma provocação de desconforto visual ao fazer um corte no rosto da boneca no qual extrai um dos olhos do campo visual. O olho escuro, circundado por um branco intenso, que permanece na composição, cria uma potência visual imperativa com o nosso olhar. O gesto da boneca com as mãos a frente do corpo parecem evocar uma situação de surpresa a uma aproximação, quem sabe a nossa de espectador, que somado aquele olho, corrobora uma situação de estranhamento. A forma como a artista mobiliza a apresentação visual das bonecas por tais cortes, enquadramentos e poses debruçadas, na obra Das Unheimliche 1, 2011, em nada lembram aspectos lúdicos, são apenas “objetos inanimados”:

As crianças dão vida aos brinquedos, fazendo as bonecas falarem, se relacionarem e, muitas vezes, atribuindo-lhes identidade e sentimentos humanos. Na ausência das crianças, esta condição se altera: guardadas na estante ou esparramadas pelo chão, não passam de objetos inanimados. Foi o deparar-se com a imobilidade e com o olhar vazio, num corpo de borracha com características que muito se aproximam ao humano, que provocou uma sensação de estranheza (GIORDANI, depoimento da artista no seu site).

A artista não realiza nenhuma transgressão física no corpo das bonecas como fazia Hans Bellmer. Se há algum tipo de transgressão nesses trabalhos de Giordani, é no modo de olhar pela janela da câmera, uma transgressão visual na maneira de registrar e enquadrar o assunto. É, através do ato fotográfico, que cria o estranhamento plástico.

As séries fotográficas de Silvia Giordani têm seu foco de interesse em questões sobre o corpo enquanto substância física, psíquica e intelectual. Trata-se de uma relação do corpo e de seus objetos: pedra, livros, espelhos e bonecas que produzem dissonâncias de significados. A trajetória plástica de seus trabalhos consolida um sistema por justaposição de paradoxos visuais e conceituais que potencializam situações de estranhamento entre as imagens.

BIBLIOGRAFIA:

GIORDANI, Silvia. Depoimentos da artista no seu site: www.silviagiordani.com.br. Porto Alegre, 2011.

JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade,2002.

RIBEIRO, Niura Legramante. Ficções fisionômicas?. Texto para o Projeto Construções. Porto Alegre, 2011.

EWING, William. El Rostro humano, el nuevo retrato fotográfico. Barcelona: Blume, 2008.

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1Doutoranda pelo PPG-AVI, UFRGS e Mestre em Artes, ECA/USP. Professora da Universidade Feevale, Novo Hamburgo e do Atelier Livre, Porto Alegre.

2Embora a expressão “Carne e Pedra” possa evocar o livro de SENNETT, Richard.  Carne e Pedra, o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: Record, 2001, a idéia para o título do projeto da artista não surgiu desse livro, mas das relações entre títulos de livros que fazem referência ao corpo e  a pedra de basalto que fotografa para  seus trabalhos.

3Este projeto Construções foi originado a partir das leituras e discussões de textos, análises de imagens e visitas a exposições e encontros com artistas, na oficina do GEF, Grupo de Estudos Fotográficos que ministro no Atelier Livre de Porto Alegre, há alguns anos.  Nessa oficina ocorreram muitos debates sobre a questão do corpo e identidade através de leituras de textos de alguns autores como, Aaron Scharf, André Rouillé, Annateresa Fabris, Arlindo Machado, Douglas Crimp, François Soulages, Jean-François Chevrier, Joan Fontcuberta, Phillipe Dubois, Susan Sontag, Walter Benjamin, dentre outros.

4Segundo texto da artista se refere a uma ideia de ‘estranhamento’. Ver depoimento da artista no seu site http://www.silviagiordani.com.br/projetos.